quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Gonçalo M. Tavares, o boxeur

Não gosto do tipo, nadinha. Eu que já admiti desconfiar dos laboriosos, para este poeta da bombazine não vai nem uma ameixa do meu espanto, que eu não gosto de embustes.
Haja paciência para este maomé que me chega cravejado de milagres como se os trouxesse desde sempre. Como se fosse anterior. Como se um milagre prescindisse de tempo. De anos e anos de espera, povos inteiros, milhares de cânticos.
E depois o homem tem pressa, se tem. Deve saber melhor que ninguém que a esperteza dá para boxeur, dá para espião, mas não serve a literatura, quanto mais a poesia. «Adorar a pedra é ainda ser-se Pedra», foi o que ele não aprendeu. No entanto o prolífico senhor em nada se coíbe de usar e abusar de uma terna linguagem evasiva que se esquiva de qualquer CONSTRUÇÃO. Insulta-me na sua ostentação, este místico de trazer por casa.
É um impostor disparando pérolas. Eu sei. Os impostores, ao passarem de raspão, reconhecem-se. E não se cumprimentam.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

post sentimental por atacado

(Calçada do combro)

canções que são autênticos crimes com vítimas rolando pelas colinas da amada cidade, tão nossa; canções cujo deslize oblíquo em certas notas tiram o coração dos atalhos; canções que até trazem o sol à estufa, o crescimento é connosco; canções que -já disse- são um sopapo na cara do fraco.
Quais?

sábado, 24 de janeiro de 2009

devil's light porch on:

tii-iime is on my side,

yes it is.

A irmã Irma II

Pergunto-me se estará familiarizada com o que ele (S. Francisco de Assis) disse quando estavam prestes a cauterizar-lhe um dos globos oculares com um ferro em brasa. Assim falou: "Irmão Fogo, Deus que te fez belo e forte e útil; rezo para que sejas delicado comigo."
Você pinta como ele fala.

A irmã Irma I

Talvez fosse um palpite arrojado mas o manuscrito encontrado não se destinaria decerto à velha matriarca, mas a uma das suas inúmeras filhas de deus. Talvez, e esticando a corda até ao limite da resistência da fibra, a carta cujo achado correspondeu à única quantidade considerável de rubor a alguma vez escorrer de tais paredes desde o ano da graça de 1870 (o leitor terá achado oportuno ou não que os anteriores anos tenham ficado de fora desta pequena pudorada baliza cronológica), destinava-se, dizia então com algum arrojo, à querida irmã Irma. Freira pequena e delicada, cujos traços físicos não vou sequer tentar descrever; que apenas ora e ama a Deus. Essa mesma pequena flor a que todos nós, num ou noutro momento mais enrascado da nossa vida, nos consagrámos. E cuja notável habilidade para pintura (na íntegra, para O amar e servir) possa ter despoletado tal carta. Eu, pela minha parte ponho-me lado a lado com o autor, agnóstico, mas como ele próprio afirmava, amante à distância de S. Francisco de Assis.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

pequeno inselberg

Yeh yeh yeh faço tudo o que posso na questão
da sobrevivência
inocência isso
é balela pequena
que sempre acaba sendo
maior na minha cama.

com as caras pintadas de preto
rodeados de pretos mesmo a gente bebe
de sua vasilha o antigo
ritual da sede que a água ensina
e nós desconhecemos
e continuaremos a desconhecer,
apesar da paródia per omnia

Ao fundo, quase com desdém, alguém faz lume:
se um leopardo arde no fogo
o grupo de farsantes desanima.


Depois das queimadas a chuva,
insiste a terra.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Deixar a festa, entrar no carro, dormir de sobretudo vestido, acordar outro.

Como Parmigianino, há uns esplendorosos V (cinco) séculos atrás, deixo a pintura para me dedicar à alquimia. Os que se precipitem em rápidas conclusões que incluam alguma espécie de desamor, sua consequente apatia e a demência que desta incorre, perdem o doce vislumbre de poder, ainda que remotamente, ver os olhos esgazeados de visões de uma devota Com Uma Verdadeira Vocação.
Eu sei que nenhum de nós aqui presente se sentirá minimamente confortável quando for forçado a dizer que é o cristal a base de uma desordem maior. Não há nada de natural na natureza.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Chega a mudez
e a gente, enfim,
dela tomba.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

pânico nocturno

Dai-nos Senhor a graça de uma vida devastada pelo amor, mas livrai-nos do medo de ver a prece atendida, amén.


quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

V.

O segredo da ruiva não é difícil de deslindar. Padece, com violência, de uma intrincada inveja que se levanta contumaz contra quem, sem querer (que querendo é outra coisa) tece histórias; contra quem se deita e se levanta com personagens; contra quem, durante a noite, cose de uma só costura os caprichos e uma ou outra timidez recorrente; contra quem sabe atravessar os dias pelas duas pontas, e se compraz tecendo solidamente uma coisa que nunca será. Que inveja bruta e cavalar tem a ruiva aos ficcionários. Os fazedores, que tal como ela dizem coisas. Só que lhes basta um sopro:

Estou cheia de pontos finais, continuou. Tresando a tiradas triunfais de segunda apanha, tenho o espírito embuído, possuído por um zelo quase evangélico, que se dedica com fervor ao lançamento de pedras lapidares para cima de cada frase. Ó cambada de pausas proféticas, huí de mim que nada quer de vós (excepto talvez o descanso numa ou noutra glória inatacável). Pareço-me muito com uma ilha de aproximação impossível. A tudo pondo sucessivos fins. Amores, descobertas, espantos, informações, diligências, amén. Só as histórias escapam. E isso porque me entretêm. Até esta pequena déspota contrariada tem os seus momentos de descontracção. Ou deverei dizer distracção?

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O quereres

Eu queria mais a tua voz, queria mais brutais paredes em bronze para que ela ressoasse ad eternum e assim per omnia de um a outro lado, um vai e vem incessante da cabeça ao pés da deusa, para adormecer finalmente em corpo dentro de um sino e atarantar uma outra pulsão cardíaca.
Eu queria sempre a tua voz a crescer a crescer e a fazer-me cair.
Eu queria o mar maior, já não me purifica como a tua voz, o mar. A tua voz que veio para cavar mais ondas.
Desfaz a amplitude das tuas cordas que nasceram metálicas, cordas que são para nós um plano de fuga inatacável, cordas que abrem nós nos externos dos pobres cordeiros que somos aos pés dessa voz. Não, não, não. Três vezes não.

sábado, 3 de janeiro de 2009

cais das colunas

Claro que canto mais um, podes arder;
Claro que te dou guarida, que te abro a porta do osso miudinho, me faço una, sem costura;
Claro que podes vir, gritar contra uma parede de água, cansar-te contra qualquer um dos meus oito muros;
Claro que sou antiga, e que da lucidez futura perdi o meu vôo. E que já remei remos de madeira e piscinas vazias de noite. Claro o verbo atravessar;
Claro que esqueço;
Claro que choro duas enormes colunas à boca desse cais: Talvez não tão lentamente assim o terreiro do paço se tenha vindo a transformar no pranto de Lisboa. Ele, que era a sua boca.