terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Máquinas de guardar o sangue

Oh!, exclamou a Senhora HC do alto da sua juventude repescada- estou a perder a mão!
A partir desse dia abandonou de uma vez o jardim. Não o descurou, não se foi
desligando gradualmente daquelas que foram as rechonchudas peónias da sua vida. Não. Isso teria sido simplesmente uma des-graça. Pelo contrário, a nossa soberana senhora-ametista soube pegar nas suas malas até à lucidez que lhe restava. Pensou: Preciso de guardar o sangue. Então deixou que o jardim se transformasse para ela, que a suplantasse, que lhe entrasse em casa. Primeiro pelas frinchas, depois pelas portadas até que, galgando a principal escadaria, o jardim mesmo ganhasse a casa; deixou que ele se tornasse, de uma lenta mas inatacável vez.
E porque a ascese vinha, desde os seus sessentas, a revelar-se como a única
virtude capaz de verdadeiramente lhe salvar a pele, a senhora H.Clément dedicou-se com uma fúria diária que eu prefiro chamar de bravura, ao desenho esquemático das poças de água. Machines à garder le sang, como ela lhes chamava.
Sangue, chuva. É dizer o mesmo.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Lá, no barquito.

O par de óculos submarinos que o rapazinho de cabeça grande atira, com desdém, borda fora, foram o suficiente para acabar comigo.
-Eles pertenceram um dia ao teu tio S., disse-lhe a mãe.
-Não quero saber.

Duas linhas abaixo, o tal rapazinho da história, deixa-nos olhar de frente para uns olhos cheios de perfeito entendimento do tesouro que acabara de desperdiçar. Mas eu já não quero saber. Atiro com a criança borda fora e nunca, nunca mais penso nela enquanto processo, com a devida histeria, o fundo do lago negro trespassado de algas que são afinal os famosos raios verdes do sol. Le rayon vert.
Procuro, de olhos postos no fundo, a cara do anterior dono dos óculos de mergulho.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

The lovely way to burn,

Quanto ainda se me pode embargar por preferir os últimos lugares do delírio, incandescentes poços de lucidez intocável? Esses lugares onde, de frente para a nossa vida toda, perdemos -finalmente- o corpo. Onde o suor assume todo o esplendor que para ele sonhámos e, todo brilho, ácido e graça, se faz caudal e se põe com particular pressa a corroer a ossada.
Aí vem ele. Posso, com a minha mão intacta, escrever o que não me restará- Temo que a febre me trará uma nova cara. Alva, suavíssima, que em nada se assemelha à minha, a que mereço.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Natal, natais


Deus ama aqueles que tentam.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A estátua, como de costume, interrompe o banquete

Minha língua diz cego quem não vê, surdo o que não ouve, mudo aquele que não fala, insensível às vezes quem perdeu o tacto, mas falta-lhe a palavra para dizer da falta de paladar. No limite minha língua só assinala ausências - a cegueira, a surdez, a mudez.
A imensa maioria não tem língua gustativa e passa muito bem sem ela -devora com pressa bestial, tanto na comida como no desejo-, e assim a língua esconde-se, encobre a própria falha e diz, sem dizer, que não tem com que se dizer.

Só uma língua erudita diz anósmico. Ou, mais raramente ainda, agênsico.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Os Fazedores III (poesys)

Só existem duas construções -e porque não me vou dar ao trabalho inglório de distinguir uma da outra, limito-me a enunciá-las- válidas na arte: a poesia e a escultura.
A pintura, por exemplo, é o maior embuste a que o homem se dedica, século após século, camada após camada. Empanturrado que está com esse apuramento, essas camadas supostamente de mistério que, na vez de abrir, fecham, estreitam o cerco. A velatura, e digo-o de uma vez por todas antes que os incontáveis exemplos da história da arte desatem a paralisar-me, é a maior anedota da pintura, que não sossegará nunca numa forma enquanto não asfixiar o desenho, a coluna vertebral do desenho.
E tão alto que ele era, usando à cabeça,
orgulhoso, a jóia de uma coisa chamada potência, anunciando tantos caminhos mesmo sendo uma coisa fechada em si, como um circuito de poderes. O desenho. Um talismã com fendas.
E ainda assim a pintura com o seu único (e comparativamente pequeno) esgar enigmático, subsiste. Muito mais do que isso: habituou-se, como se habitua uma puta velha ao longo de uma vida pontuada por maleitas, a ficar por cima. Assim nasceu o "esboço".
Pintamos porque a vida não basta, disse alguém. A vida sim basta, é quase excessiva a vida e ainda assim pintamos. E amamos.


(A cor não é para aqui chamada. A cor é uma outra coisa, sagrada. Capaz de erguer, já desde o tempo das suaves raparigas.)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

As meninas do coro II

Em torno a assistência aconchegava-se escura e suja. Depois de uma das modulações que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo esgotado como cantor murmura um "olé" em amém, última brasa.
Mas há também o canto impaciente que a voz apenas não exprime: então um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o "olé" que interrompe a cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro.

Clarice Lispector

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

As meninas do coro

Ring the bells that still can ring, diz o homem.

não tem nada que se lhe diga, escusa a audiência de guinchar como um só porco. Dêem-me as palmas que tantos gostam, que é um sempre um bom índicio de que tudo corre para o mesmo lado. E sobretudo, meninas, sobretudo... Sabem qual é a chave disto tudo, querem que vos conte o segredo da vida? Eis o que segura esta merda toda: Meninas, meninas, continuem.... por favor, meninas, não parem de cantar.

Davega

Ó rapaz que beijas num ímpeto os arcos dos pés pequeninos, que te cortas a fazer a barba e sobes, vitorioso, as escadarias completamente desabotoado. Ó rapaz domador dos cavalos, dos casacos, dos sapatos sempre polidos, da, como dizê-lo sem me arriscar?, pontaria. Ó meu soberano senhor de magníficos pulsos nus que nunca mais deixaste um certo guiador de bicicleta, onde estás tu que não te vejo, brilhante, suado, sorridente, extático? Onde, olhar mais para onde?

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Estha

sempre foi o meu pre-ferido Pequeno-homem. Vivia numa cara-vana. Dum-dum. pelas seguintes razões 1) a t-shirt cor-de-rosa-pálido colada ao torso quando chovia 2)o modo ininputável com que se dava à chuva: sem a tocar 3) o polvo que, tal e qual como eu, trazia no externo e que, ao contrário de mim, estendia os seus tentáculos por Estha fora, emudecendo-o, roubando Estha a Estha. Tão pouco espaço que ele ocupava no mundo 4) os frascos de vidro das colecções de elásticos e dos amores-em-tóquio 5) a colher que era com a irmã, colher quente a rasgar o universo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Amália, fome dos olhos

Chamaram a Celeste ao holofote, dura ao holofote, imprópria ao holofote, única e exclusivamente porque Celeste arrastava ainda a irmã. Tal e qual. E que maravilha. Tantas vozes a desfilar (e o meu coração numa), tanta produção inapta para a saudade - para isso que não é mais do que chamar um nome, e Meu Deus. Sim Senhora. Celeste chamou por ti nos olhos de todos que a vimos, o xaile de viés. Só a sua aparição física atazanou a falta que tu nos fazes. Oh Celeste, quero ser velha como tu, ser chamada ao palco por ser irmã.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008


ESTA ESPERA
FAZ-ME CRESCER
AS UNHAS

contra a tradução:

mas como evitar que um poliglota - que é, enfim, como dizê-lo?, um desgraçado em perpétuo equilíbrio, oscilando ora para um ora para outro lado mas cavalgando a toda a carga, para a dispersão- não se aventure na ilusão da tradução? Como dizer-lhe que as reproduções não existem. Que a tradução de um poema não passa de uma miragem: Um objecto está irreparávelmente ligado ao sítio físico, ao lugar concreto onde foi engendrado.


... à excepção da paródia.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

L'ombra della sera. Séc III a.C.

De Poggio alle Croce até aqui, a pequenina réplica em bronze repica o enigma da sua fonte. Io non so, non l'ha mai visto, mas a minha boca sabe cantar (sou dada às contradições das profecias) a favor desse minúsculo centro de poderes que um dia, ainda que longínquamente, se levantou contra a poeira vermelha por saber como eram, como são insuportáveis os fins de tarde.
Anda vem ver o levante, diriam à tua volta. E tu firme e sereno que a tua sombra haveria de perdurar, indiscernívelmente intacta no seu sentido, pelos séculos dos séculos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

o bichanar dos vermes


Mesmo o cabrão magnânimo do César levava atrás um escravo cuja única função era sussurrar-lhe ao ouvido uma frasezinha. Só uma coisinha, enquanto o seu vitorioso senhor fazia mais uma parada triunfal pelas ruas de Roma. Penso muito nas piscinas olímpicas desses dias- as termas. Húmidas e desproporcionadas como convém a um esconderijo. De como ficarias nelas; E na tal frase. Memento Mori.

the price of love

Vinte anos de neve;
Sete anos de exílio;
Verões na cidade;
Prantos em quartos de hotel,
aniversários em quartos de hotel,
enciclopédias em quartos de hotel;
Chávenas para sempre encardidas;
Pragas de gafanhotos;
Parábolas mortas;
Mãos sem milagres;
Tudo
por tanto
ter-te mentido.

Flannery

Até agora somos o esterco do mundo,

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vaidade das vaidades

Anatoly, que viveu há sete séculos atrás no lugar onde, atrasada a fronteira hoje se lê Ocidente mas que é igualmente, indistintamente, o vasto território espiritual da Rússia, foi o asceta que eu devia ter sido e disse:

Lembra-te do teu criador nos dias de mocidade antes que cheguem os anos (os outros)
antes que se quebre a cadeia de prata
e se despedace o copo de ouro
e se parta o cântaro, junto à fonte
e se desfaça a roda, junto ao poço,
e o pó volte à terra, como era,
e o espírito volte a Deus, que o deu.

tudo é vaidade

e é perecível.

Piove

Pára com isso, a cada deixa tua chovem inocentes guarda-chuvas (imagine-se...) disparados que vêem não sei de onde mas o que é certo é que um deles se me há de cravar no peito esmagando o externo, galgando os demais orgãos e aqui há de ficar, atravessado como uma lança assíria, com tal precisão cirúrgica- o ligeiríssimo desfazamento da lança com a sombra da lança.
Porém o dia deslizando suavemente trata de cicatrizar a vaza e se calhar, com alguma sorte, pode que com o dia claro venha também uma luz morfínica que atenue a coisa até ao cair da noite. Pois. A noite. Deixa-me abrir um parêntesis para dizer que Em rigor nem é noite, é apenas a parte inominável do dia, a que fica na sombra e por isso é indiscernível. Espanta-me como insistimos em nomeá-la, é somente o dia engolido para dentro do dia mas ainda assim é o que chega. Ah, sim.
Por isso apressa-te, diz qualquer coisa, qualquer coisa. Vem aí
a noite, essa repetição vazada do dia. Sei bem o que me espera. Tremo. Com ela chegam os teus olhos mudos para abrir o quase esquecido guarda-chuva cravado: Palavra de ventilador.