sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Das Lied von der Erde

Está tanto frio que em breve esta chuva intermitente e inútil, transformar-se-á em
neve e aí sim, quero ver. Que faremos nós das nossas noites brancas? Já a oiço, a rir-se
escancaradamente, uivando pelos portões abertos do mundo, rindo absurdamente como riem as senhoras para não chorar. Tem sido difícil por estes dias descortinar a canção da terra,
mas não será preciso suster a respiração para auscultar, ao longe, o coração crescente -cavalgante- da presa: cheira-me a vingança. Uma vingança branca, de execução inocente, quase doce. E inexorável.


(Já estou mesmo a ver, vai ser bonito procurar as chaves de casa, de qualquer casa, no meio da puta neve.)

Os Fazedores II


Pode um homem devotar (toda) a vida à construção laboriosa da preservação virginal da sua loucura, sem por vezes cair, mesmo sem a invocar, na lucidez?
O que é um labirinto sem engenharia, sem geometria, sem segredo e sem corrida? (Perder, perder todo, correr de pânico, galgar os ventrículos, correr. De si. Dos outros. Correr para dentro da gruta que é uma vaca desventrada, duma manhã que teve o azar de presenciar, correr como um louco). Mas sabe um louco planificar o seu caminho enredado, quantos anos terá a sua cólera, ou quantificar o sangue que será preciso? Tem os seus cânticos, que podem ou não vir de longe. Desconfio sempre das sinceras intenções de um laborioso.

Os Fazedores

A procura relaciona-se com a obra como os cogumelos se relacionam com o que já foi apanhado e está já dentro do cesto. Apenas o cesto cheio é a obra - o conteúdo é real e existe, pode tocar-se, enquanto um passeio pela floresta será sempre uma questão de ar fresco.
(d'aprés) Tarkovsky

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Machine a l'odeurs

ou La Véritable Histoire de France

No teatro circular, puxadas as carruagens a braços, cortadas as cabeças aos cavalos, colocadas as cabeçadas -suadas, como convém a uma revolução- às senhoras mais do que respeitáveis, resta muito pouco à construção de um delírio. Faltará talvez mencionar, ainda que ao de leve, os legionários dispensados que investem em bloco mas totalmente ao acaso, coitados.

terça-feira, 25 de novembro de 2008


Grande que és pela ferida que se abre pelo sono e que o dia não fecha.
Entras por aqui adentro e aqui ficas, sentada no tremendo trono da tua ignorância. Como o peixe com o menino dentro, que futuro é deixado a esta natação estrábica? Sempre a pesar para o mesmo lado, o crawl feito ele mesmo: rastejo.
Cara dura vete de mi, quiero dormir, nadar a gusto. Comer a fruta madura no limiar da podridão por creêr que a visão dos vermes me purifica a pequenina prova de natação.
Que o nojo me distraia do teu nome, a rebentar-me por dentro, boca, esófago, pleura. Amén.


Pára de me rondar ó leoa de olhos vagarosos, não vês que já rezei? Deixa-me em paz que quero dormir.

domingo, 23 de novembro de 2008

O peixe-voador

Se quero desenhar um peixe-voador, procuro pescar um ou então trago-o da praça, enfio-lhe um lápis na boca, desenho o peixe com o próprio corpo do peixe. Reduzo ao máximo a distância entre um corpo e o outro, entre o corpo real e o representado. Mas como é que enfio um lápis na garganta do teu canto?



O fado pode muito bem ser a desolada incidência do luar no vestido ou nas pernas da mulher, igualmente espantada, de costas para a noite. Descartando até qualquer diagrama, o desenho esquemático da guitarra. Pode muito bem ser qualquer coisa até verbosa (como a alma dos justos).
Mas que se foda se é esta a justeza para a vaga ordem das coisas. Se eu desenhasse como cantas tu o pobre coração do mundo rebentaria.

domingo, 16 de novembro de 2008

Aviso à leitura

Deveria talvez adiantar que cresce em mim a desconfiança de que há uma certa criança -de olhos grandes e paredes brancas espantadas ao luar- que se tem vindo a instalar com alguma desenvoltura em todas as linhas que escrevo. Hoje, e desistindo de vez da história para aqui intencionada, posso ainda avisar que a criança é, entre muitas, aquele rapazinho que algumas famílias serão capazes de reconhecer: o imão sereno, que se desfaz em sorrisos (meu pequeno buda constante) que sempre está em harmonia, que é em concordância com as flores até, mas que nunca olha na direção certa porque está morto.


Tudo o que fazemos na vida é passar de um Terreno Sagrado para outro.